Pandemia sem governo: como o Brasil se tornou um pária na sociedade internacional.
Sob a liderança de Jair Bolsonaro, o Brasil seguiu o caminho do negação, fanatismo e ódio. O número de mortos e infectados está aumentando constantemente e a subnotificação é alta, pois não há testes suficientes. Em 22 de maio, registramos um total de 21.116 brasileiros mortos e 332.382 infectados, enquanto um vídeo de uma reunião ministerial era divulgado e chocava o total de zero pessoas, já que aquele discurso populista banhado em ódio e ilegalidades virou o "normal". Banalizaram o absurdo.
Esse texto foi publicado originalmente em espanhol no Medios Lentos.
Dois meses de quarentena no Brasil: o que vimos até agora?
Donald Trump, Boris Johnson, López Obrador, Daniel Ortega, Gurbanguly Berdymukhamedov, Aleksandr Grigórevich Lukashenko são nomes de alguns dos líderes que negam ou já negaram a gravidade da pandemia da covid-19. Pelo menos os três primeiros nomes já mudaram o seu discurso. Seja por ter pego a doença, como foi o caso do Johnson, ou pela pressão da opinião pública, Trump, Johnson e Obrador passaram a levar mais a sério as medidas necessárias para a contenção da doença. Do outro lado, a lista daqueles que continuam a agir como se nada acontecesse tem mais uma pessoa: aquele que ocupa o cargo da presidência do Brasil, Jair Bolsonaro. A diferença é que Bolsonaro é o único que representa uma democracia. A Nicarágua, o Turcomenistão e a Belarus são comandadas por autocratas e/ou tiranos.
Com essa informação em mente, eu resolvi resumir como estão sendo esses dois meses de “quarentena” dirigidos por Bolsonaro no Brasil. Até agora. Lembrando que esse texto está sendo escrito na semana do dia 18 de maio.
Primeiros casos de covid-19 e o início das medidas de isolamento social
Os primeiros casos diagnosticados como Covid-19 surgiram no final de fevereiro e começo de março. Algumas pesquisas indicam que nós já tínhamos casos da doença no Brasil em fevereiro, mas isso só foi noticiado mais recentemente por uma análise dos sintomas das pessoas que vieram a óbito. No mês de fevereiro, o Brasil já estava ciente da gravidade do surto, mas mesmo assim demorou a repatriar os brasileiros que estavam em Wuhan (epicentro da epidemia naquele momento). A decisão de Bolsonaro só veio depois de pressão nas redes sociais por causa de um vídeo feito pelos brasileiros que queriam voltar para o país.
Eles ficaram em quarentena e foram monitorados até poderem voltar para suas casas. No mês de fevereiro, ainda, alguns casos suspeitos começaram a surgir. Pessoas estavam retornando de viagens à Europa, China (entre outros destinos), quando apresentavam sintomas da doença, eram monitoradas. Finalmente, no dia 26 de fevereiro, o primeiro caso diagnosticado foi um senhor de 61 anos que havia voltado da Itália e foi internado com os sintomas da doença.
Nos primeiros quinze dias (desde o fim de fevereiro até metade de março), outros casos surgiram sempre com o mesmo padrão: pessoas voltando da Europa infectadas. Contudo, logo começamos a observar contaminação local. As pessoas que se apresentavam infectadas neste momento eram de classe média alta, haviam passado o período do carnaval viajando e retornaram infectadas. Essas pessoas não tomaram nenhuma medida de prevenção, se encontraram com outras pessoas, inclusive seus empregados, e espalharam o vírus. Essa é a teoria mais comum para o início da contaminação interna no Brasil.
Uma das brechas para isso foi a falta de monitoramento e fiscalização nos aeroportos nacionais. Várias pessoas relataram que não havia nenhum aviso nos principais aeroportos sobre a necessidade de fazer quarentena depois das viagens. Quem fez, fez por consciência própria. A política pública nacional foi de um certo descaso com a doença. Apesar de que neste mesmo período, o Ministério da Saúde começou a compra de mais equipamentos de proteção individual (EPI) e lançou campanhas educativas sobre a necessidade de lavar as mãos e se manter o distanciamento social.
Por volta desta mesma época, começo de março, Bolsonaro estava em uma visita oficial aos EUA e falou para os presentes em um evento em Miami que “o poder destruidor do vírus é superdimensionado”. Em 11 de março, a OMS declarou a pandemia do novo Coronavírus e o Brasil já tinha casos de transmissão local em São Paulo e no Rio de Janeiro. Dois dias depois, o Ministério da Saúde regulamenta as medidas de isolamento social que deveriam ser aplicadas pelos estados e municípios. Bolsonaro começa a aumentar o tom de negacionismo nas suas falas e, no dia 15, diz que “não podemos entrar em uma neurose”.
Muitos estados e municípios já afetados adotam medidas de isolamento social. O comércio fica limitado a itens essenciais (comida e remédios), escolas e universidades fecham, a produção em algumas áreas da indústria também fica limitada. O país precisaria adotar medidas de proteção econômica para os brasileiros que ficariam sem o emprego ou sem sua renda, já que muitos brasileiros vivem do trabalho informal. No Congresso, começa-se o debate sobre a criação de uma renda emergencial, mas o governo discorda no valor: a equipe econômica do Bolsonaro sugere 200 reais por mês e o Congresso consegue aprovar 600 reais por mês para brasileiros autônomos, desempregados e baixa renda.
No dia 17 de março, acontece a primeira morte oficial pela covid-19. Bolsonaro, preocupado com a economia, diz que os governadores estão histéricos e podem provocar consequências graves à economia. O Ministério da Saúde tem que racionar testes, já que nem existem testes suficientes, nem temos laboratórios suficientes para a testagem. Somente casos graves são testados, ou seja, não sabemos quantos de fato foram infectados pelo vírus (e isso permanece até hoje).
No dia 20 de março, o Ministério da Saúde reconhece a transmissão comunitária do vírus no Brasil e permite aos gestores locais para o desenvolvimento de políticas de isolamento social com a supervisão do Ministério. Por volta da mesma época, o Governo Federal também define quais são as atividades essenciais que permanecerão abertas apesar do isolamento social. No mesmo dia 20, apesar da preocupação do Ministério da Saúde, Bolsonaro fala ao vivo em cadeia nacional e chama o vírus de “gripezinha”. Uma semana depois ele volta a afirmar que não acredita nos números divulgados. Ao final no mês, ao ser questionado sobre o aumento de número de mortes, ele diz que “todos vamos morrer um dia”. O Brasil havia registrado 136 mortes naquele 29 de março.
O mês de abril e a briga de egos entre o Ministro da Saúde e Bolsonaro
O mês de abril chegou com um aumento na polaridade do discurso entre Bolsonaro e o então ministro da saúde, Mandetta. Foi no final da primeira semana de abril que as pessoas em vulnerabilidade puderam começar a se cadastrar para receber 600 reais, por três meses, como renda emergencial.
A renda emergencial mostrou como o Brasil não conhece suas diferenças. O benefício foi depositado automaticamente para quem já estava cadastrado no sistema único de assistência social. Contudo, uma boa parcela de brasileiros sequer possuía CPF (documento necessário para receber o benefício), muito menos conta corrente e, quiçá, internet. Para receber o benefício, é necessário que o indivíduo se cadastre em um site ou um aplicativo de celular. Muitas pessoas tiveram problemas com o cadastro e, o que se viu nas demais semanas, foram filas e mais filas em frente às agências do banco público responsável pelo pagamento do auxílio. A efetivação do pagamento, provavelmente, contribuiu significativamente para o avanço da doença entre as populações mais vulneráveis brasileiras.
Dia 10 de abril, o primeiro indígena (um adolescente de 15 anos) perde a vida por causa da Covid-19. O contato se deu, provavelmente, por contato com grileiros (pessoas que usurpam terras de proteção pública). O desmatamento da Amazônia alcançou um recorde histórico de 10 anos no mês de abril. Já se imaginava que, por causa da pandemia e do desmonte da política pública de proteção à floresta, registraríamos um aumento do desmatamento. Dois dias depois, Bolsonaro fala sem nenhum fundamento em uma live, para seus seguidores, que “a questão do vírus parece estar indo embora”. O Brasil registrou nesse dia 1.223 mortes.
Quatro dias depois, dia 16 de abril, o ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta foi demitido por Bolsonaro. Mesmo dia em que o Brasil completou um mês da primeira morte e registrou 1.952 mortes. Em alguns encontros antes, ele já havia reclamado da postura de protagonismo do ministro e dito que era preciso mais “humildade”. Depois de uma batalha que durou uma semana, a demissão foi confirmada gerando temor na sociedade e na economia. Houve uma disparada do dólar e a bolsa caiu. O ministro substituto foi o Nelson Teich e foi somado à equipe sob a promessa de “aparecer menos”.
Depois da demissão do Mandetta, o Ministério da Saúde passou pelo menos duas semanas para se reorganizar minimamente e continuar com as políticas de combate à doença. Luiz Henrique Mandetta ganhou capital político (ao menos momentaneamente) e passou a ser inserido em pesquisas de opinião como presidenciável para 2022. Os estados e municípios continuaram, na medida do possível, a traçar as políticas de isolamento e de prestação de serviços de saúde da melhor forma que entendem, mas nem todos seguem as orientações da OMS. Alguns líderes ligados a Bolsonaro começaram a reabrir a economia. Blumenau, uma cidade do estado de Santa Catarina, resolveu reabrir o comércio e chamou a atenção com um vídeo em que as pessoas se aglomeravam para entrar em um Shopping. Uma semana depois, os casos de contaminação nesta mesma cidade dobraram.
Com o contínuo aumento do número de casos registrados, uma subnotificação importante e um Ministro da Saúde apático, o Brasil continuou enfrentando dificuldades no combate e algumas cidades chegaram ao colapso do sistema público de saúde com cerca de um mês de registro do primeiro caso. Foi o caso de Manaus. O estado do Amazonas é o maior estado do Brasil e a única cidade que possuía leitos de alta complexidade no SUS era a sua capital, Manaus. A situação do atendimento de saúde público naquele estado já era ruim antes da pandemia. Escândalos de corrupção envolvendo os governos passados facilitaram que apoiadores do Bolsonaro fossem eleitos para o governo, contudo, a situação permaneceu ruim e se fala até em impeachment do governador do Amazonas agora.
Alguns estados não conseguem testar a todos e as pessoas são enterradas com laudo médico de “síndrome respiratória aguda grave (SRAG)”. No estado de Pernambuco, por exemplo, no período de janeiro a abril de 2019 foram registradas 18 mortes por SRAG enquanto que no mesmo período de 2020 foram contabilizadas 537 mortes. Isso quer dizer que o total de mortes por covid-19 naquele estado poderia ser cerca de o dobro, já que no dia 28 de abril eles contabilizaram 508 mortes desde o início da contagem. Abril termina com mais de 5 mil mortes de brasileiras e brasileiros decorrentes do novo coronavírus. A resposta do presidente: “E daí? Quer que eu faça o que?”. A resposta seria: começar a agir como um presidente.
Maio e as medidas mais de confinamento começam a surgir
Diante do inevitável colapso do sistema público de saúde; protestos encabeçados por Bolsonaro pelo fim da quarentena; pessoas descumprindo as medidas de isolamento por causa da falta de informação e de liderança do presidente e a extrema dificuldade de lidar com as comunidades mais pobres brasileiras, não houve outra saída senão decretar o confinamento social em algumas cidades. O que se popularizou como “lockdown” foi adotado nos estados do Maranhão, Pará e Amapá e em cidades dos estados do Amazonas, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte. No estado de Pernambuco também foram adotadas medidas mais restritivas em alguns municípios da região metropolitana da capital Recife, mas o governo preferiu não usar o termo em inglês.
Rapidamente, logo nos primeiros dez dias do mês, o Brasil dobrou o número de mortes desde o fim de abril e chegou aos mais de 10 mil brasileiros e brasileiras mortas pela covid-19. A doença avança rápido para ser um dos principais motivos de mortes no país. No dia 15, o novo ministro da saúde pede demissão depois de divergências com Bolsonaro sobre o uso da cloroquina como tratamento. Seguindo Trump, Bolsonaro começou a forçar a utilização do medicamento no tratamento da doença mesmo sem evidência científica. E mesmo sem ser médico.
Bolsonaro exigiu que o laboratório do Exército brasileiro passasse a fabricar o medicamento e que o protocolo de atenção à covid-19 fosse modificado para inserir o uso da droga no início dos sintomas. O motivo pela insistência no uso do medicamento é para que as pessoas se sintam confortáveis em sair de casa, sabendo que existe tratamento caso elas fiquem doentes. O que ele argumenta também é que é um medicamento barato. Contudo, o preço pago pelo governo na matéria prima aumentos seis vezes em menos de um ano. Diversos estudos mostram que não há conclusão sobre efetividade da droga e os riscos podem ser maiores do que a própria doença.
Aproximando-se do fim do mês, temos mais de 250 mil casos confirmados da doença e ultrapassamos o Reino Unido. Estamos agora na terceira posição do mundo dentre os países com mais infectados (lembrando sempre que temos uma grande subnotificação pois apenas os casos mais graves são testados). O número de mortes chega a 16.762 brasileiras e brasileiros. No momento que esse texto for ao ar, esse número estará bem maior.
Com as imensas discrepâncias do nosso país, já sabíamos que quando o vírus atingisse as camadas mais pobres nós teríamos um grande aumento de casos e uma média de morte mais elevada por causa da fragilidade das nossas populações. Contudo, o discurso de Bolsonaro tem colaborado para piorar nossa resposta. Quem pode ficar em casa e ajudar a diminuir o fluxo de contaminação tem se arriscado a ir para as ruas inclusive para pedir o fim do isolamento. Os estados e municípios estão isolados no combate sem ajuda do governo federal. Pequenas e micro empresas também reclamam da falta de suporte e a população mais pobre passou por um calvário para conseguir receber apenas 600 reais como ajuda financeira.
Pandemias causam crises econômicas e isso é inevitável. O que pode ser evitada é a dimensão desta crise. A resposta dada pelo governo brasileiro até hoje tem contribuído para levar o Brasil a pior crise econômica da sua história segundo analistas. Do outro lado, milhares de vidas estão indo embora sem o mínimo de dignidade nos últimos momentos. Dezenas de milhares de profissionais da saúde se arriscam heroicamente com o pouco que têm para salvar as vidas que conseguem. Até quando teremos que suportar essa falta de comando no maior país da América do Sul?